Tudo que começa errado está fadado ao fracasso?

Giovana H. Meneguin
4 min readJun 2, 2021

Por Giovana H. Meneguin

Foto: arquivo pessoal.

De manhã, um dos primeiros itens que olho ao acordar é a pintura A2 emoldurada na parede. Tons de azul e vermelho, nuvens estelares, corpos celestes, rochas e quedas d’água são alguns dos elementos que compõem uma paisagem que, sinceramente, poderia ter saído diretamente do filme de Kenneth Branagh, Thor, lançado em 2011. Aliás, é justo dizer que um dos motivos pelos quais comprei o desenho, em Paraty, foi exatamente por ele me lembrar da representação de Branagh para o mítico reino de Asgard.

Mas além de achar a tal pintura muito bonita e intrigante, ela é bastante especial para mim por um motivo simples: a adquiri na minha primeira vez em Paraty. Curiosamente, essa foi também a viagem de carro mais louca que já fiz na vida — alguns dirão até que é exagero, mas posso afirmar que passei maus bocados para que um dia pudesse passear por aquelas ruas coloniais e, então, encontrar um quadro galáctico digno de ser pendurado na minha parede.

O ano era 2014, alguma manhã de meados de abril, provavelmente uma sexta-feira. Meu pai, como o bom metódico que é, fechou o porta-malas da nossa Rav4, conferiu se tudo estava no lugar e partimos rumo à cidade patrimônio. Marginal, Trabalhadores, Dutra… Como em um piscar de olhos, cruzamos Aparecida e, depois, Cunha. Paisagem linda, rural e tortuosa.

Conforme avançávamos na SP-171, que mais para frente passa a ser RJ-165, enormes árvores se curvavam em direção ao asfalto esburacado, formando um túnel. Quanto mais adentrávamos naquela passagem natural, a neblina se intensificava — vale dizer que a cerração fazia jus àquelas histórias cujos protagonistas (ou então antagonistas) são do tipo Hannibal Lecter.

No momento em que finalmente vimos as placas indicando o Caminho do Ouro e a Estrada Real, vimos também alguns cones e homens de laranja na via. Aparentemente, a estrada estava em obras. No entanto, os “ixi”, “nossa” e “que saco” que ressoavam no interior do carro, indicavam que dar meia volta e pegar outro caminho até Paraty não era uma opção. Mas, compreensível, afinal, faltava tão pouco para chegarmos na cidade portuária.

A título de curiosidade, também chamada de Caminho Velho ou Caminho do Ouro, a Estrada Real representa o primeiro trajeto determinado pela Coroa Portuguesa, ligando a cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, a Paraty, no Rio de Janeiro. Hoje, um trecho dela é justamente a rota Paraty-Cunha. E, veja bem, para alguém que, como eu, adora história, mais legal, impossível.

Fato é: o ditado diz que há luz no fim do túnel; no nosso caso, entretanto, quando chegamos ao fim, estávamos só no começo. Após um dos trabalhadores confirmar com a maior segurança do mundo que a estrada estava tranquila para descer, mas “só com um pouquinho de terra”, nas palavras dele, seguimos em frente pela Estrada Real.

Acontece que o pouquinho de terra era, na realidade, muita terra. Aliás, era só terra e mais nada, puro barro, vermelho e úmido. O caminho, lamacento e estreito, era cercado por rocha de um lado e precipício de outro. A cada curva mais brusca ou trecho mais sinuoso, o carro ameaçava atolar. Mas ruim mesmo era quando ele dava sinais de que, a qualquer instante, poderia começar a patinar naquele cenário de rally.

Se eu tivesse que definir aquela descida em uma única frase, essa com certeza seria “nem wi-fi passa” — e não passava mesmo; sinal de celular, na mata, é só em sonho. Em vários momentos do percurso, que posso jurar ter durado umas três horas, pensei que morreria. Alí. Literalmente no meio da lama. Nem preciso mencionar que, ainda no carro, concluímos que se a gente saísse vivo daquela cilada, a Tamoios seria a rota mais sensata para a volta, marcada para dali a cinco dias.

Não lembro como terminou, mas terminou. Aos poucos, o barro da obra foi dando lugar ao asfalto irregular da Paraty-Cunha e casinhas começaram a desabrochar nas laterais da via. Depois do sufoco, foram dias imersos em tranquilidade, cultura e praias paradisíacas, que, na minha opinião, estão entre as mais bonitas do mundo.

Contrariando todas as nossas próprias expectativas e indo na contramão do ditado “tudo que começa errado está fadado ao fracasso”, nos apaixonamos tanto pela cidade que de lá pra cá foram muitas idas e vindas àquela baía — quase todas pela Estrada Real, hoje devidamente reformada.

Vale mencionar também que sempre que estou em Paraty, flerto com a ideia de comprar “só mais uma” pintura do Juan, artista de rua, daqueles que desenham com sprays e materiais improvisados, típicos das cidades litorâneas. Não importa o dia ou mês, ele sempre está no início da Rua do Comércio, dando seu show. No fim das contas, até hoje, levei pra casa só mais duas, além da asgardiana: um cenário campestre de fim de tarde e uma caravela portuguesa na costa. Felizmente, é tanta recordação que as paredes estão ficando escassas por aqui.

Texto escrito para o curso de Narrativas Afetivas de Viagem, do SESC Consolação.

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